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West World/Babel (Alma; F97)

28/05/2022 - Por fernando de mesquita sampaio
Atenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.

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A terceira temporada de WestWorld traz, além da presença mesmerizante de Evan Rachel Wood na tela, a distopia de um mundo dominado por uma inteligência artificial. Um programa que não só é capaz de prever o comportamento de cada ser humano com base em suas decisões, mas que passa a determinar as decisões que cada um irá tomar, roubando-lhes assim o livre arbítrio. O programa manipula de relacionamentos a processos de seleção de empresas e eleições, definindo qual será a vida de cada um segundo suas capacidades, competências ou problemas. Os instáveis por exemplo são impedidos de assumir cargos de poder. Ideia algo tentadora.

Segundo o fictício inventor do sistema, interpretado na série por Vincent Cassel, seu objetivo era salvar a humanidade dela mesma. O mundo assim parece um formigueiro organizado, com seus problemas aparentemente todos resolvidos. Mas é deprimente pensar que a única saída possível para a humanidade seja um grande teatro de marionetes movidas a algoritmos de uma I.A.

Em oposição a essa ideia, autores como Matt Ridley em seu “O Otimista Racional”, Robert Wright em "Non-zero: The Logic of Human Destiny" e Rutger Bregman em “Humanidade, uma história Otimista do Homem” propõem a cooperação em escala e o livre intercâmbio de pessoas e ideias como parte da evolução e chaves para melhorar o bem estar da humanidade. Apoiando-me nisto, e considerando a realidade presente, há três temas principais sobre os quais eu tenho tentado me debruçar:

O primeiro é a complexidade. Metadados, pandemias, logística e cadeias produtivas globais, clima, conflitos, migrações. É óbvio que nos tornamos uma sociedade muito mais globalizada e interdependente, e por isso muito mais complexa. Acrescente-se o que Bauman chama de modernidade líquida, onde nada parece ser permanente. A cada minuto aparecem novos desafios, mas também aparecem informações, iniciativas, soluções, tecnologias, movimentos sociais, e tudo numa velocidade surpreendente. Não existirá jamais a possibilidade de controle sobre tudo o que aparece de novo. Mas de certa forma é preciso todo esse movimento líquido nos leve, ainda que aos trancos e barrancos, para um lugar melhor. Para isso é preciso sonhar futuros possíveis para a humanidade. Para o neurocientista Sidarta Ribeiro, que lança agora o livro Sonho Manifesto: “A explosão vertiginosa do sofrimento planetário […] é uma marca do tempo extremado que vivemos. Superar essa explosão de sofrimento através de uma expansão de consciência é a tarefa das gerações que estão vivas agora –e para isso precisamos reaprender a sonhar, tanto metafórica quanto literalmente.” Metaforicamente porque precisamos de fato pensar coletivamente no mundo que queremos. Literalmente porque segundo o neurocientista, sonhar (dormindo) é uma forma do cérebro organizar o passado para poder pensar no futuro, e ativa áreas cerebrais relacionadas com empatia, nossa capacidade de nos relacionarmos de forma cooperativa com nossos semelhantes.

O segundo tema é justamente a cooperação. Problemas cada vez mais complexos como mudanças climáticas, desenvolvimento sustentável e outros requerem cooperação entre diferentes setores. Há um artigo extraordinário que traz elementos que moldam comportamentos de cooperação em grupo. O título é “How neurons, norms, and institutions shape group cooperation. Advances in Experimental Social Psychology”, e seus autores são Jay J. Van Bavel, Philip Pärnamets, Diego Reinero, e Dominic Packer, professores das Universidades de Nova York, Princeton e Lehigh.

Vale muito a pena ler o artigo todo, mas alguns destaques são importantes. Grupos de pessoas cooperam porque indivíduos fazem cálculos de custo e benefício do que podem ganhar cooperando ou não. Acontece que se os objetivos da cooperação são mais distantes (digamos o clima no planeta daqui a 50 anos) o interesse pela cooperação diminui. Eu tendo a cooperar mais quando tenho mais confiança no grupo de pessoas com as quais estou cooperando, e confio mais se compartilhamos dos mesmos valores e posições. Quando esses valores e posições são mais distantes, a cooperação é mais difícil, e nesse caso, instituições confiáveis podem servir de intermediárias ou anteparos a essas colaborações.

A grande ameaça à colaboração vem principalmente da deterioração na confiança no outro. E aí, a coisa tem piorado bastante com as tais das redes sociais.

Há um artigo recente de Jonathan Haidt na revista The Atlantic intitulado “Why the past 10 years of american life have been uniquely stupid. It’s not just a phase”. Nizan Guanaes diz que se queremos ver o futuro é só ir aos Estados Unidos e ver o que acontece lá. Aqui as mesmas modas chegam um pouquinho mais atrasadas. Haidt usa a metáfora da Torre de Babel para descrever como os algoritmos e redes destruíram o tecido social, fraturando a América azul e a América vermelha, mas também a direita, a esquerda, as universidades, as famílias. Estamos vagando nos escombros sem nos entender sobre quem somos, nosso futuro, nosso lugar na História.

Cientistas sociais descrevem três forças principais que nos unem coletivamente como sociedade em democracias bem-sucedidas: relações sociais baseadas em confiança, instituições fortes e uma história compartilhada. Bem, redes sociais conseguiram enfraquecer todas elas. Em uma democracia incipiente como o Brasil, é de se esperar que a coisa seja ainda pior.

Aí entramos no terceiro tema que me interessa, a questão da liderança.  Líderes para mim são pessoas que conseguem navegar na complexidade e promover a colaboração. São raros. O que vemos hoje são cheerleaders, aqueles que jogam para sua torcida. Trocaram liderança por likes.

Deixar-nos guiar por esse tipo de liderança traz riscos embutidos que precisamos ressaltar.

O primeiro é que em um ambiente em crescente complexidade, mais e mais os líderes precisam se apoiar em redes de colaboração. Se a colaboração é corroída, também é a eficiência da liderança.

O segundo é que os cheerleaders também são fruto da corrosão da confiança, e quanto mais a internet contribui para isso, mais extrema a polarização vai ficando. Madeleine Lascko, jornalista e especialista em mídias e cidadania digital traduz para nós o que o V-Dem Institute da Universidade de Gothenburg na Suécia demonstra com dados. Quanto mais a política se traduz em um fla-flu de nós contra eles, bem contra o mal, mais tendemos a transformar democracias em autocracias. À esquerda e à direita diga-se de passagem.

E finalmente, é que em busca de maior “engajamento” e likes em sua torcida, cheerleaders vão radicalizando o discurso em nome da “liberdade de expressão”. Quanto mais radical, mais repercute, mais engajamento. E confundem liberdade de expressão com liberdade de serem responsabilizados pelas consequências do que dizem. Palavras tem poder. Negacionismo científico mata, misoginia mata, homofobia mata, legitimar a violência mata. Toda violência nas redes uma hora ou outra vira violência real, nas ruas. De câmaras de gás a chacinas, mulheres espancadas, estupradas e tatuadas a força, crianças ianomamis dragadas, pessoas achacadas e ameaçadas, temos diariamente exemplos concretos de como palavras em voga na necropolítica abjeta que tomou conta de certos espaços se traduz em atos criminosos.

Na abertura do filme La Haine de Mathieu Kassovitz, o narrador conta a história de um homem que cai do 50o andar de um edifício.

Durante a queda, para se sentir melhor, ela olha os andares passando e vai repetindo para si mesmo: "Até aqui tudo vai bem, até aqui tudo vai bem, até aqui..."

O problema não é a queda, é a aterrisagem.

Creio que podemos sim sair dos escombros dessa Babel onde ninguém se entende e todos afundamos enquanto vamos dizendo até aqui tudo vai bem. Mas não creio que para isso seja necessário o algoritmo de West World a nos controlar. Todos esses temas que abordo aqui: complexidade, colaboração e liderança, são interdependentes e necessários para a construção de soluções para os imensos desafios locais e globais que enfrentamos como sociedade.

Precisamos debater os passos possíveis que nos movam para a cooperação e o intercâmbio entre pessoas e idéias. Precisamos, como diz Sidarta Ribeiro recuperar a capacidade de sonhar com um futuro possível e melhor.

Precisamos minar o que está corroendo nossas possibilidades de colaboração. Francis Fukuyama, escreveu também recentemente um artigo chamado “Tornando a internet segura para a democracia”. O artigo reflete sobre os achados do Grupo de Trabalho sobre a Escala das Plataformas Digitais da Universidade Stanford, e investiga possíveis soluções para reduzir o poder de plataformas digitais, não no sentido de controlar conteúdos, mas de políticas públicas que previnam atores políticos de usar seu poder para amplificar ou suprimir artificialmente certos tipos de conteúdo, e que mantenham um ambiente com igualdade de condições para que ideias possam competir entre si.

Precisamos de instituições sólidas. Daron Acemoglu e James Robinson demonstram em “Porque Nações Fracassam” que isso faz a diferença entre países bem e mal-sucedidos. Roger Scruton, expoente do pensamento conservador diz que o verdadeiro conservadorismo está em entender que as coisas boas que construímos como sociedade levaram muito tempo para ser feitas, mas podem ser destruídas muito rapidamente. É óbvio que as instituições brasileiras precisam de reformas. Implodi-las dificilmente trará algo melhor em seu lugar. Trabalhar para aprimorá-las sim.

Finalmente precisamos de verdadeiras lideranças. Como diz a Madeleine, estamos dando poder e visibilidade a pessoas que são cruéis. Não podemos tolerar o intolerável, nem em nome de uma suposta liberdade de expressão. É Paradoxo de Karl Popper. Se o fazemos, no fim seremos engolidos por ela. Cria cuervos y te sacarán los ojos diz o ditado...

 

Para referências:

https://psyarxiv.com/jqhp4/

https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2022/05/social-media-democracy-trust-babel/629369/

https://estadodaarte.estadao.com.br/fukuyama-internet-democracia-journal/

https://madeleinelacsko.com.br/

https://www.v-dem.net/

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