Blog Esalqueanos

O PROF. EDMAR J. KIEHL QUE CONHECI parte 2 (Adilson Paschoal; F67)

26/02/2018 - Por adilson dias paschoal
Atenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.

6275 views 1 Gostei 0 Não gostei

O PROF. EDMAR J. KIEHL QUE CONHECI.

Parte 2. Uma vida dedicada à matéria orgânica e aos fertilizantes orgânicos.

Adilson D. Paschoal.
Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, USP.

A vida dos grandes homens que deixaram seus nomes na história sempre esteve cercada de momentos difíceis, a grandeza de suas obras resultando da superação das dificuldades, de vencer obstáculos, de expor sem receio as suas ideias e convicções, e de provar as suas teorias. Não foi diferente com o Prof. Kiehl. Recusado na Química Agrícola passou, como professor adjunto do Departamento de Solos e Geologia da ESALQ, a realizar grandes trabalhos, pesquisando e publicando vários artigos e livros sobre o assunto que “ninguém queria”, ou seja, os fertilizantes orgânicos, numa época em que os fertilizantes minerais ganhavam força, com as pesquisas conduzidas no Departamento de Química da mesma instituição. Seus trabalhos mais importantes foram: Compostagem (1978), Compostos orgânicos (1979), Preparo do composto na fazenda (1979), Cinquenta perguntas e respostas sobre composto (1979), Fertilizantes orgânicos (1985), Fertilizantes organominerais (1993), Manual de compostagem (1998), Compostagem: obtenção e aplicação (2000), Adubação orgânica: 500 perguntas e respostas (2008), Novos fertilizantes orgânicos (2010), e Matéria orgânica do solo agrícola (2012). Não menos importantes foram seus trabalhos sobre compostagem de lixo urbano, desenvolvidos para a Prefeitura de São Paulo, que, assim, pode disponibilizar toneladas de composto orgânico de lixo para vários usos, até mesmo no cinturão verde da cidade, por produtores de hortaliças.

Tais trabalhos, e de outros autores que se despontavam no cenário nacional e internacional, constituíram importante fonte de conhecimento que ajudou alavancar o movimento ecológico e conservacionista que inflamava o País nas décadas de 70, 80 e 90, levando à implantação e consolidação da Agricultura Orgânica no Brasil. O livro Manual de Edafologia. Relação solo-planta, escrito por Kiehl 1979, permitiu a mim, e aos demais proponentes da nova agricultura, entenderem melhor a teoria da Trofobiose, proposta na França por F. Chaboussou, segundo a qual o surgimento de pragas e patógenos está relacionado a desequilíbrios no solo e na bioquímica da planta. Muito do que dele aprendi usei na disciplina de Agroecologia e Agricultura Orgânica (que primeiro se chamou Ecologia e Conservação de Recursos Naturais), ensinada na “Luiz de Queiroz” desde 1976, o que fez da USP a terceira instituição pública em todo o mundo a ter uma disciplina dessa natureza, depois das Universidades de Wageningen, na Holanda, e de Kassel, na Alemanha.

Mas sua contribuição não se limitou às pesquisas sobre adubos verdes e adubos orgânicos. Em 1976, nos 75 anos da ESALQ, coube-lhe escrever sobre o patrono da Instituição, Luiz de Queiroz, o que soube fazer com maestria. Escritor e historiador, ajudou fundar o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, de que foi o primeiro presidente. Mais tarde, se empenharia na remodelação do Zoológico Municipal e na criação do Paraíso das Crianças, obra para a qual foi buscar inspiração nos Estados Unidos. Em 1979, reuni-me com ele e com o Dr. Nelson de Sousa Rodrigues, conceituado especialista em peixes, em minha sala no Departamento de Zoologia, para a elaboração de um documento, com soluções para o grave problema por que passava o rio Piracicaba, que agonizava poluído por restilo, esgoto e despejos industriais. A equipe fora nomeado pelo Prefeito Municipal João Hermann Neto, sendo os resultados apresentados e discutidos na Câmara Municipal de Piracicaba. Cópias do documento foram encaminhadas ao Governador de São Paulo Paulo Egydio Martins e ao Presidente da República Ernesto Geisel. O rio voltou, paulatinamente, a exibir vida novamente, graças a várias medidas políticas e técnicas tomadas ao longo dos anos.

Compenetrado nos seus trabalhos, que continuaram após sua aposentadoria em 1980, de gênero afável, por vezes irônico e espirituoso, costumava dizer-me ser a matéria orgânica a sua “cachaça”. Certo dia, encontrando-o como sempre bem disposto, gozando de boa saúde, tive com ele o seguinte diálogo:

Professor, disse-lhe eu. O senhor está sempre de muito boa aparência. Qual é o segredo da sua saúde?

Não vou lhe dizer, responde ele.
Mas por quê?
Você me perguntou qual o segredo da minha saúde, não foi?
Foi.
Pois então. Segredo não se conta pra ninguém...
Estivemos juntos em muitas ocasiões, viajando pelo país para divulgar, ele os

fertilizantes orgânicos, e eu a Agricultura Orgânica e os perigos dos agrotóxicos. Em uma delas, na distante Lavras, levou-me e a um colega consigo em seu carro, recusando que nós o ajudássemos a dirigir; sua determinação impressionava. Costumava iniciar as palestras realizando mágicas, que prendiam a atenção da platéia. Em dia que o visei em sua casa, colocou-me ele em minhas mãos o livro Vida secreta das plantas, cujo autor não me recordo, sugerindo que o lesse com atenção, pois iria modificar a maneira de ver as plantas, de como elas interagem com os outros organismos, inclusive com o homem, por mecanismos bioquímicos e impulsos eletromagnéticos; — “É como tivessem alma”, disse-me ele.

Um dos últimos trabalhos que fizemos juntos foi em 1989. Convidado pela companhia alemã Brauen und Brennen para desenvolver um projeto de produção de suco orgânico de laranja no Brasil, cuja fábrica sugeri fosse instalada na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, pela baixa contaminação dos pomares cítricos deste estado, convidei o Prof. Kiehl para se integrar ao grupo, ficando ao encargo dele desenvolver técnica de compostagem do bagaço a ser gerado na usina, de maneira a integrar o processo industrial à produção agrícola. O objetivo desta companhia cervejeira era produzir suco de laranja, prevendo que, com a fusão das duas Alemanhas, os alemães orientais iriam consumir mais esse produto. Não foi o que aconteceu. Depois da fusão, ocorrida em 1990, o que mais aumentou foi o consumo de água mineral e de cerveja, ficando o suco de laranja em terceiro lugar. Tal acontecimento não previsto foi suficiente para que o projeto fosse encerrado. A queda do Muro de Berlin derrubara também o projeto brasileiro.

O professor Edmar J. Kiehl faleceu em 12 de dezembro de 2017, com a idade de 100 anos.

Professor, colega e amigo Kiehl: Requiescat in pace

PUBLIQUE NO BLOG!