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O Alphaville e a Favela, ou nosso apartheid rural (Alma; F97)

17/08/2020 - Por fernando de mesquita sampaio
Atenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.

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Minha avó aprendeu a nadar no Rio Pinheiros. Em um tempo onde São Paulo era uma metrópole europeizada, de arquitetura neoclássica, com bulevares arborizados, parques e praças.


No espaço de duas gerações, o crescimento explosivo e desordenado e a especulação imobiliária levou a cidade ao caos atual de poluição, violência e tráfego ensandecido.


A sociedade não se movimentou para debater soluções para mobilidade, saneamento, urbanização. Mas criamos shopping centers e condomínios fechados onde existe a infraestrutura e a segurança que não se encontram nas ruas. Às vezes, alardeados como sinais de progresso, para mim constituem a evidência maior de nosso subdesenvolvimento.


Quando meus pais eram crianças, escolas públicas eram altamente conceituadas no Brasil. No espaço de uma geração, foram arruinadas.


Durante este processo, a sociedade não se movimentou para evitar esse desmonte da educação básica pública. Mas criaram-se excelentes escolas privadas.


Em resumo. O Brasil é um salve-se quem puder.


Vamos transportar este debate para a paisagem rural brasileira.


Na mesma paisagem convivem fazendas altamente produtivas e tecnológicas com assentamentos miseráveis, conflitos e invasões, desmatamento e ilegalidade, áreas degradadas e subutilizadas, regiões sem nenhuma aptidão para a produção ocupada, regiões agricultáveis imobilizadas, especulação fundiária, violência, infraestrutura ruim.


Hoje cresce fortemente a pressão em cima de grandes empresas do agronegócio brasileiro para que estas se empenhem em separar "o joio do trigo", e assim livrar sua cadeia de fornecimento da ilegalidade e especialmente do desmatamento.


Permitam-me fazer uma previsão pouco otimista do resultado desta pressão.


Em 2016, Zander Navarro e Eliseu Alves, ambos pesquisadores da Embrapa, concluíram baseados no Censo Agropecuário que dos 4,4 milhões de estabelecimentos rurais do país, apenas 500 mil responderam por quase 90% do valor bruto da produção. Dentre estes, apenas 24 mil produziram a metade do valor. Desconheço os números atualizados mas arrisco dizer que a situação só piorou.


Acredito que não será muito complicado para as grandes empresas do agronegócio cercarem-se de seus grandes fornecedores para garantir não só a oferta necessária em termos de volume, mas também a garantia dos critérios socioambientais exigidos pelo mercado. Essa pressão é ainda maior na pecuária, haja visto a presença dominante dessa atividade nas zonas de maior risco das fronteiras agrícolas. Frigoríficos buscarão junto a alguns de seus fornecedores maneiras de garantir a oferta e o controle completo da cadeia (com fornecedores de ciclo completo, integração da cria com grandes confinamentos e por aí vai), eliminando dela os que não conseguirem alcançar esses padrões.


E essas grandes empresas poderão mostrar seus relatórios e checklists e fotos de satélite a seus grandes investidores, grandes bancos e grandes clientes que ficarão felizes em ver que não há desmatamento ali, e que são todos sustentáveis.


São nossos condomínios fechados do campo. Nosso Alphaville rural. O Brasil continuará exportando e crescendo. Mas lá fora a favela continua.


Esse apartheid rural já está funcionando, mas tende a acirrar-se, acirrando junto com ele os conflitos e problemas que temos hoje.


É claro que empresas devem atuar em suas cadeias para reduzir o risco a que estão submetidas hoje. Mas a solução que resolve os problemas das empresas não resolverá os problemas que temos no campo, especialmente o desmatamento, a não ser se combinadas com outros esforços públicos e da sociedade civil.


Esta é uma das razões pelas quais embora o número de empresas globais assumindo compromissos contra o desmatamento em cadeias de commodities só tenha aumentado de 2010 até hoje, o desmatamento continuar subindo.


Da mesma forma que falhamos nas nossas cidades e na educação, falharemos no campo também se não criarmos um ambiente institucional que permita à sociedade estabelecer uma visão de longo prazo para o desenvolvimento rural do país a partir de estratégias transversais.


Essas estratégias envolvem o ordenamento de paisagens, o zoneamento econômico ecológico, financiamento, controle da ilegalidade, regularização fundiária, assistência técnica, destinação de terras não destinadas, o futuro da infraestrutura e dos mercados.


Parte central desta discussão é exatamente o que fazer com os mais de 3 milhões de estabelecimentos rurais que ficarão de fora do Alphaville.


Na pecuária especialmente, onde o preço é definido pelos produtores mais eficientes, grande parte hoje dos produtores perde dinheiro sem saber. Se são grandes (em área), vão deteriorando seu patrimônio, perdendo pastagens e rebanho. Se são pequenos apelam ao desmatamento, ao fogo, e acabam sendo expulsos da atividade.


Os mesmos pesquisadores citados acima, em um artigo intitulado "Pobreza Rural, Pobreza de Ideias", falam sobre as duas visões existentes sobre o assunto. A primeira, a mais usada pela classe política é a que não há nada a fazer a não ser esperar que essa população migre para as cidades. O que só piora o problema das cidades, uma vez que outros setores da economia dificilmente poderão absorver essa mão de obra. A segunda, arraigada em um esquerdismo anacrônico é a de que a culpa da pobreza recairia sobre a questão fundiária, e portanto somente uma reforma agrária reverteria o quadro, quando a verdade é que hoje a terra é um fator muito menos importante na geração de renda no campo.


Não tenho todas as respostas, mas imagino que parte desses estabelecimentos poderia encontrar, com uso de tecnologia, capacitação, investimento e assistência, seu lugar em cadeias de produção voltadas ao mercado local, com maior valor agregado. E que poderiam ganhar muito se o cooperativismo pudesse ser incorporado nessas estratégias. Mas imagino sobretudo, que poderiam ser prestadores de serviços ambientais. Especialmente água e carbono.


Pensar o futuro que queremos para a paisagem rural brasileira é imprescindível não para garantir o futuro das nossas exportações de commodities. É imprescindível para saber em que tipo de país nossos filhos viverão. Se pudéssemos voltar no tempo, não tentaríamos salvar as escolas públicas de antigamente? Ter cidades bonitas e preservadas? A nosso favor, o Brasil é um país jovem, e ainda há tempo de mudar o rumo de muita coisa. Contra nós, nossa eterna incapacidade de articulação interinstitucional, de pensar a longo prazo, de pensar além do próprio umbigo, e de exigir de governos não privilégios mas políticas inclusivas e eficientes. 


Fernando Sampaio (Alma F97), é Engenheiro Agrônomo e Ex Morador da República Lesma Lerda

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