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Gato Preto - Uma crônica de 60 anos (Stranho; F87)

08/11/2024 - Por claudio varella bruna
Atenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.

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    Numa manhã, bem no começo do século XX, o Sol acordou na fazenda São João da Montanha. Ergueu a cabeça e sentiu o estalar das costas desaprumadas numa noite de sono pesado. Parecia um dia normal. Dava para ouvir a água chiando no Salto, rio abaixo. Do outro lado, o vento balançava o algodão nas plantações dos americanos. Olhou para o oeste e lembrou o percurso que sua carroça iria percorrer até o fim do dia.

    No alto da colina, ele nota um movimento! Um grupo de pessoas materializava o sonho do Doutor Luiz Vicente, que se foi precocemente depois de deixar, na montanha, um legado; que foi depois narrado ... pelo Seu Salvador, poeta e professor. Era como se o dia tivesse duas auroras, mas essa outra ainda brilhava pouco e o Sol, sem ter percebido, seguiu seu caminho distraído, sem se dar muita conta da importância do fato.

    Seis décadas se passaram. A Fazenda do Doutor Luiz já despontava como grande escola. Perto, no centro da cidade próxima, numa casa alugada por alguns alunos, um rapaz abre a porta e, trôpego, tenta atravessar a sala escura. Desastrado, esmagou num pisão a cabeça de um bichano, filho de uma gata adotada pelo grupo. Em volta do corpo negro do pequeno felino, os meninos chocados renderam homenagem batizando a casa como República Gato Preto.

    Mais sessenta anos se passaram e a República segue viva. Sua história corre simultânea a quase metade da vida da Gloriosa Escola. Abrigou mais de duzentas pessoas que depois partiram em "missão vitoriosa." A sobrevivência teimosa parece, às vezes, dispor de algumas das seis vidas tomadas de seu gato-mártir

 

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    Quando morei na Gato Preto, a história da República tinha se perdido. Em algum momento, haviam parado de recontá-la. Os ex-moradores não se reuniam. Imagino que, nas comemorações dos qüinqüênios (gosto dos tremas), diferentes gerações se cruzavam sem se reconhecer.

    O livro; "Pinho, Pinheiro, Pinhão", fornecia uma pista. Conta a história de uma família que se estabelecera em uma fazenda no Paraná. Luís, o protagonista, criado na fazenda, deixava a terra natal para estudar na ESALQ. Em Piracicaba, ele teria morado numa certa República Gato Preto, isso na década de 1930.

    Um certo dia, eu já estava formado, me contaram que a campainha tocou na casa da Rua Regente Feijó. O Doutor Saravá, passando em frente, reconheceu o nome que estava na placa. Fruto das primeiras safras de Mourantes Gatopretenses, ficou surpreso ao ver que a república se mantivera viva até então. Do telefone, imediatamente, ligou para um contemporâneo: "Você não acredita onde estou agora". A história da Gato Preto poderia ser contada desde o começo até um fim qualquer que nunca será o último.

    A origem presumida do livro não se confirmou. A República se descobriu algumas décadas mais nova. Fica a questão: houve uma outra Gato Preto mais antiga? Talvez sua mascote tivesse dentes de sabre. Mais provável que o autor do livro tenha buscado inspiração nos registros akáshicos.

 

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    A casa da rua Santa Cruz tinha fachada preta. Era uma tradição trazida de outros endereços. Pensavam todos que refletia o Gato, se é que a cor negra pode refletir ou ser reflexo de alguma coisa. Poucos sabiam que a tradição começara por conta de um contrato de aluguel no qual as senhoras proprietárias exigiam dos locatários que pintassem a entrada da casa. Os rapazes foram à loja de tintas e pediram aquela que estava em oferta. Quando viram o serviço terminado, as senhorias entraram em choque, mas não chegaram a enfartar.

    Sobre a garagem havia um terraço. O chão era forrado com caquinhos vermelhos e as paredes brancas eram estampadas com a tinta preta dos bundogramas colhidos dos ingressantes. O solário servia para reuniões mais numerosas. Conversível, o espaço se transformava em um segundo salão para o vizinho Bar do Cridão. A cerveja saída do freezer do Seu Euclydes subia as escadas para a varanda, presa nos dedos fortes do garçom.

    Numa ocasião, um senhor aterrissou naquele espaço assim que terminou de dar uma palestra no auditório do CALQ. A organização do evento se valeu das características únicas das nossas instalações.

    O tal Doutor Fifi (acho que ouvimos falar dele depois, aliás, muitas outras vezes) contou histórias difíceis de acreditar. Verdade que elas me foram confirmadas pelo seu filho homônimo e pelo Doutor Zequinha, bufaleiro da nata, que cumpre missão vitoriosa às margens do Jacupiranga.

    Quando fui incumbido falar a respeito dos 60 anos da Gato Preto, lembrei-me do Livrão, no qual estão relatados muitos eventos e parte das peripécias dos Mourantes. Folheei o volume para refrescar a memória. Pareceu que aquele Doutor não exagerava tanto".

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    Sobre onde era a Fazenda São João, a carroça do Sol cruzou incontáveis vezes. Mas, ao contrário do que acontece em outros carreadores, o repassar das rodas não estragou o caminho. A escola cresceu majestosa, contrariando aquela coisa de entropia.

    Num fim de dia, faz pouco tempo, o carroceiro chegou ao poente, vermelho e suando em bicas com o calor piracicabano. Ouviu um berro!

    Sentado à mesa, numa espécie de boteco celestial, chamava o Doutor Luiz. Com ele estavam o Seu Salvador, aquele que era poeta e professor; o Diretor Pádua Dias, que, além do calor, se queixava por ser lembrado apenas como nome de rua; e, em visita, o Senhor León Morimont, que tinha sido uma espécie de encarregado da Fazenda nos primeiros tempos.

    Enquanto soltava o cavalo, percebeu que havia um rapaz novo no grupo. Tinha chegado àquela dimensão não muito fazia. Compositor, era autor do hino da Escola. Por esse retrospecto, tinha sido chamado a compor uma moda para aquela ocasião. Apesar de ilustre, o ZZM, como era conhecido, não se furtou a servir aos doutores aquela cerveja trincando de gelada que o Senhor León tinha trazido dos paraísos belgas. Servir aos mais antigos era uma tradição jamais esquecida nas rodas esalqueanas.

    Havia uma outra mesa ao lado daquela. Era formada pelos gatopretenses que terminaram suas missões vitoriosas. Lá estavam o fundador, Doutor Pelego; o professor Valtinho; o Doutor Ivan, que tinha cadeira cativa nos churrascos e entre outros, o Suflér, que lá chegou menino e, por levar os valores aprendidos na república, seguia o exemplo do rapaz da mesa ao lado e não deixava o copo dos doutores esvaziar.

    Um pouco atrasada para o evento chegou Dona Luzia, mais conhecida como Terezão. Premiada poeta do dialeto local, que em duas épocas distintas cuidou do bando de destemidos. Era grande por dentro e por fora. Com muito vigor cozinhava, arrumava a casa, cuidava das roupas com muito amor, bem verdade que sem muita delicadeza. Afugentava em altos brados as meninas más que ainda hoje vem desviar a atenção dos rapazes nas épocas das provas, quando floresce flamboyant.

    Os participantes das duas mesas se aproximaram. Havia muita história para contar.

 

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    A história da Gato Preto é permeada de pequenas passagens como a de tantas repúblicas. Pouco depois daquela vez em que as gerações de Mourantes se descobriram, um grande churrasco foi organizado no vasto quintal da rua Regente Feijó. Estavam todos lá. Eu cheguei a temer que os Gatopretenses fossem imortais, ou tivessem pelo menos seis vidas.

    As histórias começaram a ser contadas e recontadas. Elas são narradas em trechos, por vezes, desconexos. Algumas aventuras são lembradas com alegria. Jovens heróis conquistaram troféus inesquecíveis, como um bicampeonato de futebol de salão, um dromedário, um pterodátilo, um semáforo, um pentacampeonato de cabo-de-guerra e uma família de anões de jardim com Branca de Neve e tudo. Verdade que, algumas vezes, as glórias foram interrompidas por agentes da lei, que tinham seu senso de responsabilidade acima do espírito esportivo.

    Outras são recordadas com um pouco de tristeza, como quando nos divorciamos de alguns colegas. Para que haja essa coesão que mantém a casa em pé, além da sintonia, os valores têm de ser seguidos.

    Contar histórias entretém tanto a quem transmite como a quem escuta. Lembrar a história é poder saber como acertar e não repetir os erros.

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    E o velho Sol, todos os dias, continua a sobrevoar a Noiva da Colina. Muitas vezes, no meio da noite, ele escuta um barulho, mas tem deitado tão cansado que nem se levanta para averiguar. Quando acorda pela manhã, é a Lua que, antes de ir embora, conta o que houve:

- É o Gato que sempre ruge: Gato Preto-to-to-to!"

 

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