Blog Esalqueanos

Crise, Trote e o Pingo Gelado (Pikira F87)

14/03/2016 - Por cesar figueiredo de mello barros
Atenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.

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Durante todo o tempo em que morei na Avarandado, república modelo tríplex e pole-position de falta de conforto e campeã de falta de privacidade que existiu de 1978 a 1987, persistiu no único chuveiro quente da edificação, renitente e persistente pingo de agua gelada, bem no rumo da nuca, que a habilidade do Paquinha e indiferente indolência dos demais moradores nunca logrou consertar. Nunca foi problema nos períodos de calor, predominantes no período letivo, mas incomodava bastante naquelas poucas semanas frias, de abril a agosto.  

Fomos contemporâneos, caro professor, mas não deve se lembrar de mim. Você era conhecido como Crise, sempre envolvido com as boas causas da política estudantil e da agricultura alternativa (assim era chamada, antes do termo “orgânico” se popularizar), assíduo frequentador daquelas reuniões e assembleias memoráveis, no Calq, no recém inaugurado Centro de Vivência, na CEU e, com bom tempo, no Gramadão; eu era mais dado às festividades e porralouquices em geral. Uma única vez, fui aplaudido, louvado e ovacionado, por “azuis” e “vermelhos” ao mesmo tempo, e terminei com uma longuíssima e improdutiva assembleia na escadaria do Prédio Principal, com a minha proposta de só permitir a matrícula na Gloriosa de ingressantes naturalmente calvos, acabando com a discussão e solucionando de vez a questão “de permitir ou não o corte de cabelo dos bixos”.

Doutra feita, talvez se lembre, acho que foi por ocasião do celebre Congresso da ESALQ, (aquele que pretendia vasculhar “os porões da USP” e revisar o acordo MEC-USAID, além de descobrir que interesses estratégicos ocultos haviam levado John Fitzgerald Kennedy a financiar a rodoviária de Piracicaba nos anos 60) estivemos em uma longa maratona dialética-etílica-marxista-seiquelámais que passou por vários bares (Illinois, da Tota, Jet Set, do Paulinho na Moraes, nem sei) e se alongou até uma edícula onde você morava, salvo engano, ali pelos lados da Gato Preto e o Bar do Décio. Salvo outro engano, sozinho. Eu e você e o Altivo Angu com certeza, talvez o Bichanão e o Karniça, possivelmente o Karina.

 Nunca me filiei a nenhuma das correntes cromáticas que imbecilizavam (e continuam imbecilizando) o debate e sectarizando os alunos. Que, paradoxalmente, quanto mais “azuis” e ciosos da liberdade individual se identificavam, melhor conviviam em comunidade, em republicas com mais moradores e menos privacidade para cada um. Os que eram chamados “vermelhos” ou “verdes”, adeptos da coletivização e da socialização dos meios de produção, via de regra viviam em poucas pessoas, com quartos individuais e com hábitos e espaços individuais mais reservados. E só tendo morado (ou apenas convivido) em república, daquelas cheias de gente e algo promiscuas, tendo aprendido a dividir espaços, a se submeter ao todo em detrimento do egoísmo individual, a reconhecer e respeitar diferenças, se entende o quão rica e significativa pode ser essa vivencia única que transforma meninos em homens, amizades verdadeiras, irmãos de outro sangue, que perdura por toda a vida. E proporciona experiências sublimes e tocantes, como os moradores que se revezavam para nunca deixar sozinho aquele colega que viu a própria mãe morrer em um trágico acidente; ou o pai que sustentou por quase um ano o colega órfão que iria abandonar a faculdade por falta de condições financeiras; ou os ex-moradores que financiaram, e os próprios alunos que colocaram a mão na massa, para construir uma casinha onde a velha empregada pudesse ter uma velhice mais digna.  Será que a convivência e intimidade proporcionada pelo trote não teve nada a ver com isso?

De outras instituições nada posso falar, mas na qualidade de ex-aluno, neto, sobrinho e parente de um monte de ex-alunos, e pai e tio de alunos atuais, sou testemunha de que todo mundo que passou por ai adora a ESALQ e sente orgulho de ter feito parte desta singular instituição. Todo assunto que a envolva ou cite me interessa mas infelizmente não consegui um exemplar do seu livro sobre o trote, quero ainda lê-lo cuidadosamente, só vi uns textos e vídeos na internet e minha sociologia é toda de botequim e algumas leituras bissextas, provavelmente equivocadas. Mas afora alguns delírios bobos esquerdizantes (“mecanismo de perpetuação das classes dominantes”, por exemplo) não vejo maiores problemas na suas teses e posições. Só mais uma expressão da ditatura do politicamente correto que vivemos. Nem mesmo concordo com as críticas feitas a sua (e do simpático Prof. Queda) dedicação de pesquisador razoavelmente pago pelo contribuinte paulista ao assunto, acho um tema bem interessante.

Dizem que Maneco Vargas, filho do então todo poderoso Presidente Getúlio, foi o bixo mais “ralado” de todos os tempos, obrigado a medir (e errar por duas vezes) todo o trajeto do bonde que ligava a Gloriosa ao centro da cidade. Com um auge nas décadas de 40, 50 e 60 do século passado, quando era relativamente comum estudantes saltarem do trem em movimento antes da estação, banhos de pixe e óleo queimado, entre outros costumes pouco ortodoxos do estudantado esalqueano, esse rito de passagem diminuiu o vigor e violência na nossa época, para recrudescer em pentelhação, falta de imaginação e espírito suíno de uns tempos pra cá. E, indesculpável e injustificável, perdura após o 13 de maio, sabe-se  lá por quê e pra quê.  E obvio, existem excessos, erros e circunstancias degradantes, juvenis e tolos como seria mesmo de se esperar. Como a própria vida, aliás.

Mas com uma diferença muito importante: está restrito ao convívio e intimidade de algumas dezenas de repúblicas, o que assegura, precariamente vá lá, a única premissa realmente fundamental da tolerância da sua existência, ser VOLUNTÁRIO, tanto por parte de quem sofre, como por quem aplica. E, cá pra nós, não era tão ruim, bixo não paga, faz com que se conheça um monte de gente, tinha e tem episódios muito engraçados e memoráveis. Quem sabe, funcione mais ou menos como o pingo gelado na nuca, pra lembrar que tua vida mudou, exige que você é quem tenha que se  adaptar, lembre-se que não existe mais a proteção do sacrossanto e superprotegido lar. E que nem tudo na vida funciona como a gente quer ou gostaria. E que nem todo banho pode ser quente. E pra acabar com o carrapato, não podemos matar a vaca.

Grande abraço doutor, e talvez, como há trinta anos atrás, a gente possa investigar essas teses sociológicas tomando umas geladas? Apesar de bixo e amador,  eu pago. 

Cesar Figueiredo de Mello Barros (Pikira F87) Engenheiro Agrônomo, Ex Morador da Republica Avarandado

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