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ADJETIVOS
22/02/2017 - Por marcio joão scaléaAtenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.
O Velho achava que cada pessoa, ao nascer, vinha acompanhada por um adjetivo, cujo significado iria, a grosso modo, moldar suas atitudes pela vida afora. Havia os que seriam otimistas, os sonhadores, os pessimistas, os dominadores, os realistas, os dominados.
Sonhador
(idealista, devaneador) fora seu Pai, até onde o Velho conseguia recordar, dos
poucos anos de convivência. Mas um sonhador de pés no chão. Artesão ao cortar e
costurar os paletós, as calças e os coletes, tarefas inerentes ao ofício de
alfaiate. Mas artista ao desenhá-los nos tecidos, assim como eram arte os raros
"estudos" de desenhos, bustos, perfis e nus, rabiscados em papel de embrulho e
ciosamente guardados a sete chaves. Profissional responsável ao atravessar
noites em claro para terminar as encomendas dos clientes, mas suficientemente
sonhador para, também durante noites em claro, cortar e colar balões
magníficos, verdadeiras obras de arte. Rígido cidadão e pai de família, pouco
afeito a expansões e carinhos, mas disfarçando as lágrimas ao ouvir uma ária de
Caruso. Sonhava com viagens, e as fazia : pescarias, caçadas, até que numa
delas não voltou, acho que o coração não suportou ter que disfarçar tantas
emoções por tanto tempo.
Submissa (do
latim submissu : obediente, inferior, dócil, humilde, respeitoso) fora sua Mãe,
achava o Velho. Ela aliava a presença constante e imprescindível para o
equilíbrio do lar de forma quase imperceptível, sem competir com o marido, à
capacidade de ser independente e ter suas atividades próprias, profissionais e
sociais, sem sair de casa. Ao enviuvar o choque foi terrível, pois para
sobreviver haveria que cobrar dos que deviam ao seu falecido esposo, por roupas
feitas e entregues. Apesar de todos os minuciosos apontamentos, organizadamente
anotados nas famosas "cadernetas", não se consegue cobrar uma dívida com
docilidade, humildade e submissão. A esmagadora maioria dos ex-clientes
simplesmente não pagou, apesar de serem vizinhos, amigos de muitos anos e até
parentes. O Velho a escutou chorar, muitas noites, mas nunca a viu
Devotada (do
latim devotatu : dedicado, afeiçoado, amigo, apegado, destinado, votado) fora
sua irmã mais velha, Carmen, ponderava o Velho. Seja no lar, na vida afetiva,
na vida profissional, na amizade, nos relacionamentos. Colocava-se sempre por
último, suas batalhas visavam sempre o bem estar de outros. Do marido, do
filho, da mãe e dos irmãos. Dos empregados e funcionários que trabalhavam para
ela ou para os seus. Dos animais que a acompanharam pela vida, desde a
cachorrinha Duquesa, nos anos 50, até o gato Pitty, quase no fim. Dos vizinhos
de prédio, síndica exemplar por tantos anos. E sua devoção foi algumas vezes
mal interpretada, como intromissão. Mas isso não a abatia, era-lhe incentivo.
Só uma coisa conseguiu abatê-la, deixá-la confusa e inconformada,
transformando-a numa caricatura do que sempre havia sido : a doença. Foi triste
para todos acompanhar seu martírio, de pouco ou nada valeu toda devoção a ela.
Discreto (do
latim discretu : reservado, prudente, circunspecto, atento, recatado), fora seu
irmão Claiton, concluiu o Velho. Nunca uma explosão de alegria, de surpresa, de
ódio, ou de amor. Comemorações contidas, desde a conquista da Copa de 58,
alegre mas comedido em meio a uma turba exaltada pela emoção e pelo álcool.
Discreta emoção no casamento, no nascimento dos filhos e nos freqüentes
sucessos profissionais. Discretas risadas após contar as anedotas de que
gostava. Elegância discretíssima. Discreta alegria nas noitadas de bilhar e de
óperas apreciadas no telão de sua casa. Assim como discretos foram seu
sofrimento, sua agonia e sua morte, perdendo a batalha contra o câncer. Tudo
muito discreto, mas não menos empolgado e empolgante, como deve ser com um
gentleman.
Voluntariosa(espontânea,
caprichosa, teimosa), era sua irmã Rosa, achava o Velho. Desde a juventude,
aprendendo a tocar acordeão mesmo tendo um piano em casa. Participando das
atividades da igreja de São Geraldo, como filha de Maria e até cantando no
coral, mesmo contrariando ainda que muito levemente, as tendências de seu pai
que não apreciava muito aquilo. Indo viver numa chácara isolada após enviuvar,
contra o palpite de toda a família. A imagem que melhor a define é a da pessoa
a dar a última palavra, sempre. E geralmente a palavra certa.
Adjetivos,
moldam ou refletem ?