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A VILA, LADO IMPAR (Pinduca F68)

27/01/2016 - Por marcio joão scaléa
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A VILA, LADO IMPAR

A Vila era o nome do numero 346 da Alameda Olga, Barra Funda, São Paulo. Era uma rua sem saída, composta de 22 sobrados geminados, construídos provavelmente na década de trinta. O Menino mudou-se para lá, com sua família, no ano de 1951. Foi uma mudança drástica, inclusive no estilo de vida, a Vila tinha muito mais status do que a Rua Barra Funda, ao lado do Largo da Banana. O fogão da nova casa, de marca Cosmopolita, já era a gás de rua, o que na casa antiga era ainda a carvão. O mesmo gás de rua alimentava o aquecedor Guarany para o banho, dentro de uma banheira de verdade! O banheiro, em si, já era outro avanço, em relação ao "quartinho" da casa antiga, numa varanda envidraçada, pois tinha até bidet. Alguns meses depois o Seo Lázaro providenciou uma geladeira Frigidaire, importada, sensacional. A casa era bem localizada : na esquina, defronte o 346, ficava o armazém da D.Vitória, para o pão e o leite. Atravessando a rua, a farmácia. A dois quarteirões o Grupo Escolar D.Pedro II e a igreja de São Geraldo, no Largo Padre Péricles, onde hoje termina o minhocão. O terreno da casa era estreito, da largura dos quartos, uns quatro metros talvez, mas era comprido, com um grande quintal murado, que terminava num terreno baldio, ao lado da oficina da Morris, pequenos carros muito comuns na época, acho que ingleses.

 

As casas eram numeradas, lado esquerdo as impares, lado direito, as pares.

 

Na casa 1 morava o Seo Zoroastro e D.Ida. Ela era o terror da molecada, que insistia em jogar peladas na entrada da vila, bem defronte ao portão de sua casa. As bolas que ela rasgou com a faca foram muitas, apesar das súplicas, inclusive de seu filho Paulo, também jogador.

Na casa 3 viviam os Licciardi, cujo filho tinha mais ou menos a idade do Menino, mas que não se misturava muito com os demais, pois D.Eglantina, sua mãe, não gostava da gente da Vila. Chamava a atenção a quantidade de pizzas que eles buscavam na Panificadora União Paulista, ao lado da igreja, e que eram trazidas naquelas caixas redondas de papelão, cheiro forte de muzzarela e orégano ao passar.

Por algum tempo morou na casa 5 a família de D.Lurdes, uma professora vinda do interior, que foi embora algum tempo depois da morte de seu filho, afogado na Praia Grande. Uma forte lembrança é a do velório do Zé Carlos, amigo do Menino, caixão de zinco lacrado, forte cheiro de formol. A casa ficou fechada por um bom tempo, até ser comprada e reformada por um outro casal, ela também professora, chatíssima, que tinha uma filha também chatíssima, protótipo do que se chama hoje de patricinha, estudante do Colégio Santa Marcelina.

Na casa 7 morou por algum tempo uma família de pernambucanos, muito numerosa. Um dos filhos, mais ou menos da idade do Menino, era excelente jogador de futebol, disputado pelos times da vizinhança. Aproveitando-se disso, ele pulava de clube em clube, sempre aprontando, mas sempre aceito novamente, graças ao seu futebol e aos dotes físicos de sua irmã, muito cobiçada. Mudou-se para lá, depois, o Sr.Carmine e D.Assunta, italianos recém emigrados. Ele tinha uma oficina de qualquer coisa e ia muito bem, pois a casa logo foi reformada para o nascimento da Antonella, xodó dos dois e da Vila. O choque foi com a morte do Sr.Carmine, ainda muito novo, poucos anos depois.

Na casa 9 morava a família do Sr.Carlos Aguiar e de D.Suzana. Ele de mais idade, ela vistosa balzaqueana, que logo ficou viúva. Suas três filhas protagonizavam cenas inesquecíveis ao namorar no portão da casa, altas horas da noite, impiedosamente fiscalizadas pela vizinhança, através das venezianas. Era imprescindível escuridão total por trás, para o "voyeur" não ser denunciado pela sua silhueta contra a luz.

A D.Silvia, que negociava coisas a domicilio, morava na casa 11. Solteirona, ela também alugava quartos para moças recém chegadas do interior. Delas, a mais grata lembrança é da Cleo, apelido de Cleonice, cabeleireira, lindo rosto e belo corpo, perdição dos adolescentes, marmanjos, coroas e velhos da Vila. A sua visão, de camisola ou peignoir nas preguiçosas manhãs de domingo, será para sempre inesquecível. 

Na casa 13 morava outra família Licciardi, mas que não se dava muito bem com o irmão da casa 3. Pessoal educado e pacato, excelentes vizinhos, cujo pequeno incômodo era o dedilhar insistente da Lizete, filha única, num piano. Todo dia, tarde afora, era aquela monocórdia melodia de estudante pouco inspirado.

Na casa 15 morava outra família de italianos, emigrados há mais tempo, ele dono de uma confeitaria e de um Citroen. Ela, voz grossa e rouca, mãe de três filhas que tinham vergonha de morar na Vila. Não cumprimentavam e nem sequer olhavam para os demais moradores. Eram tristes figuras.

Pela casa 17, de aluguel, passou muita gente, mas ninguém que marcasse a infância ou a adolescência do Menino.

Já na casa 19 morava uma senhora, funcionária publica solteirona e sua tia, D.Mariquinha, de quase cem anos. A sobrinha fumava, o que era meio escandaloso para a época, e a velha tinha como distração caminhar lá do fundo da Vila até a entrada, para apreciar o movimento da rua. O que era um transtorno para os moleques, pois ela demorava mais de dez minutos para atravessar o campo das peladas com seu passinho centenário. Mas sua travessia era religiosamente respeitada.

Finalmente, na casa 21, última casa do lado esquerdo, moravam sempre duas famílias, pois havia um corredor junto à divisa com a Serraria Serratoros, que dava acesso independente a uma edícula no quintal. Por ali passaram também muitas pessoas, mas a única lembrança é a de D.Emília, senhora solteirona e beata, portuguesa, que morou lá por um bom tempo. De olhos claros, vinha sempre conversar com a mãe do Menino, voz muito baixa, forte sotaque português.

 

O lado par fica pra depois.


Marcio Joao Scaléa (Pinduca F68) é Engenheiro Agrônomo ex morador da Republica Mosteiro

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