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Cenas do Cotidiano Piracicabano de Décadas Atrás - Parte 2 (Adilson Paschoal; F67)

12/09/2017 - Por adilson dias paschoal
Atenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.

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No Hotel Central...

Assim que o casal deixa a Brasserie, em busca de pouso, em pouco tempo já se achava às portas do Hotel Central. O magnífico prédio, de dois andares, fundado em 1890, quando tinha apenas o andar rente ao solo, fora totalmente modificado e ampliado tempos depois, ganhando um segundo pavimento na década de trinta, passando a ter cinquenta quartos. Em posterior reforma, realizada duas décadas depois, um prédio de mesmo estilo, que existia anexo a ele, adquire um segundo andar, sendo incorporado ao primeiro, aumentando assim o número de quartos; para proteger da chuva, uma marquise foi sobreposta à porta principal. Já nos anos sessenta, nova reforma acontece, transformando-se a marquise em sacada balaustrada, com acesso por uma porta que antes era a janela de um corredor; sustem-na duas colunas. Tal arranjo permanece sem alteração nas duas décadas seguintes.

Atravessando a rua Moraes Barros, após passar pelo Banco do Brasil, virando “às dereita” na Galeria Brasil, e depois “às esquerda”, bem na esquina, do lado da Catedral de Santo Antônio, o casal, ele na frente e ela logo atrás, chega ao Hotel Central, pouco percebendo, devido ao cansaço e à chuva fina que caia, a beleza arquitetônica do magnífico prédio, de estilo neoclássico. Sob ampla marquise, servindo de sacada, sustentada por duas colunas jônicas, abre-se uma formosa porta, iluminada por duas grandes arandelas de ferro, com os globos de vidro leitosos. Subindo três degraus, de escada de mármore branco de Carrara, já que o prédio tinha porão, como todos outros da época, subitamente o nosso personagem, que estranhamente esfregava os sapatos no aconchegante tapete vermelho, que cobre parcialmente a escadaria, preso a ela por reluzentes tubos de latão, volta o olhar para a esposa e diz enfático:

Puxa vida! Pensá que aqui morreu de morte matada o pintor de Itur... (de cujo nome não se lembrava, pois não foram poucas as “cervas” bebidas). E continuando: Óia que ainda pode tê sangue do coitado esparramado pur aí. Carcule só: o marido pegô o tar no pulo sacaniando cum a muié dele, aqui memo no hoter; o disgramado andava cum ela um mundão di tempo. Foi um pega pra capá. Deu no que deu: se estrepô; bateu coas deis. Cois de loco.

Sem mostrar grande interesse no que dizia o marido, uma vez que, aborrecida pelos acontecimentos inesperados da noite, para quem ele era o grande responsável, e ainda porque ele “tava chutado”, “cercando frango”, diz ela:

Para de falá nhonhice!... Dexa de imbramá eu!... Arranja logo um quarto pra nói durmi, que eu tô muída de cansera! Sem reação do marido, que se conteve face à sobriedade do lugar, continuou ela, depois de curto intervalo: Si tivesse um biriba no ponto bem que nói pudia pegá um. Aqui deve sê caro pra burro, e muquirana do jeito que ocê é; um mão de vaca!...

Vontade ele teve de dar-lhe um pedovido”, uns cascudos na cara”, de mandá-la praquele lugá, mas “penso mió e arresorveu ir cum carma, num fazê conta dela.”

O amplo saguão, iluminado por lustres de cristal pendentes do teto, tinha confortável sala de estar, com poltronas, mesas decoradas e grandes vasos de plantas. Ao fundo, uma grande porta de vidro abre-se para uma sacada balaustrada, faceando um jardim de inverno, localizado no centro do prédio. As janelas dos quartos internos também se abrem para o jardim. O hotel dispõe de uma sala de refeições, para a qual se entra por magnífica porta de vidros, alta e larga, de folha dupla, toda ela de madeira de lei pintada de branco, com vidros translúcidos, importados da Bélgica, sendo incolores aqueles das folhas móveis, e incolores e coloridos de verde e de amarelo os das folhas fixas; o caixilho, que lhe aumenta a beleza, tem vidros incolores e coloridos, dispostos de forma alternada. Em um canto da sala, um lavabo de louça inglesa, com toalha para as mãos. Lustres e ventiladores pendem do teto. Ao fundo da sala, magníficas janelas de imbuia, pintadas de branco, ornadas de vidros translúcidos, abrem-se para o formoso jardim. Uma sala mais simples, para café, aparece em continuação à sala de refeições, sendo o acesso por porta idêntica a anterior. Quando o casal chegou, as mesas já estavam postas, de véspera, para o café matinal.

No balcão de recepção, um senhor de meia idade folheava papéis quando o casal timidamente dele se aproxima. Logo fica claro, pela expressão das palavras, que o recepcionista não era da Noiva da Colina.

Censa! ...Boa noite! diz o rapaz.

Boa noite! responde o recepcionista, tirando os olhos do que observada com muita atenção. E depois de se concentrar, pergunta: O senhor está querendo um quarto?

Queremo!
Para uma noite?
É! Purcaus que nói perdemo o úrtimo bonde pra Vila e fiquemo sem condução pra vortá.

Tá bicho feio!
Entendo. Queira assinar o livro, com nome e endereço.

Pelo motivo apresentado, ficou claro para o recepcionista que não era necessário perguntar se tinha bagagem. A moça nova, entretanto, e o adiantado da hora, fê-lo prosseguir com as perguntas.

Casado?

Sô. Aquela lá (apontando para a moça, que aguardava sentada em uma poltrona, exibindo uma paciência nervosa) é a minha muié. Faiz treis ano que casemo. Ela parece novinha mais é di maior.

Queira colocar o nome dela aqui (apontando para o livro de registro de hóspedes) e a data do nascimento.

Chi! Ocê agora mi pego di carça curta. Mor? Que ano memo quiocê nasceu? Si esqueci.

Não houve resposta. A questão só serviu para aumentar ainda mais a “reiva” da pobre e sofrida donzela. Pensou: “Si era em casa eu passava um sabão nele que só veno.Por prudência, arresorveu num dar nem tchum pra ele”.

Lançada uma data, que supôs verdadeira, o rapaz, mostrando que era comedido, que não perdia facilmente a “carma”, ainda teve tempo de comentar com o recepcionista, depois de se ver bem recebido por ele:

Esse hoter é muito chique. Deve ter quarto di montão. E pra mostrar que era bem de vida, que não era nenhum inhonhaco”, “bóia fria”, ou “carpidô di cana”, inquire ele, depois de se

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registrar: Precisa pagá agora? Si precisá num tem pobrema. E batendo com a mão direita no bolso de traz da calça “ranchera”: A bufunfa tá tudo aqui.

Não. O senhor pode pagar amanhã, quando deixar o hotel. São muitos, sim, os quartos. O seu é o 33, no andar de cima, subindo por aquela escada (apontando para uma escada em um dos cantos do saguão). A diária inclui o desjejum, que é servido na sala de café.

E para provar que era inducadoe curto”, pois só “fartô terminá o ginásio”, e bão di palavriado, diz ele ao receber a chave do quarto:

Brigado. Tá tudo sastisfazido? Podemo subi pra cima?

A escada de acesso ao andar superior tinha degraus de mármore de Carrara, com os guarda-corpos constituídos de gradis de ferro fundido, em estilo clássico, artisticamente trabalhados, importados da Europa. O corrimão era de madeira.

Um pouco mais conformada com a situação, achando que todo aquele luxo podia, afinal, compensar os muitos dissabores passados, a moça, que vinha calada desde que adentrara o hotel, por fim exclama ao pisar no último degrau:

Benhê! Será que eis não vai cobrá os zóio da cara de nói? Ouvi dizê que eis enfia a faca nos hóspede. Ocê viu o chiquê do restorante?

Ché! Ocê inté parece um jaculão. Nói num tem que pagá o restorante; ocê num viu o portero falá que o des...o des...; Se isqueci o nome que o home falô...; o café cum leite e pão cum mantega é de lambuja...

Ocê tá querendo gozá co a minha cara, num tá?
Palavra de Deus que num tô!
Abrindo a porta do quarto 33, o casal fica deslumbrado.

Puxa vida! Óia que chique! diz ele.

Mai nem! Chique no úrtimo! ...Tá da ponta da oreia! diz ela, esboçando um primeiro sorriso.

E o diálogo continua animado:
Óia qui puxa camão! Dá vontade de deitá e rolá enfatiza ele.
Nem vem que não tem! Nói veio aqui pra discansá, falô? desencoraja ela.
Mor? Vem vê o banhero. Tem inté bidê! Óia a pia: tem sabonete e pasta pra bascuiá os

dente.
Eh, lasquera! Quem tá parecendo jacu do mato agora é ocê. Tudo hoter tem essas coisa,

rapais. O pobrema é que nói num tem nem camisola, nem pijama, nem ropa limpa pra trocá.
Cesqueceu que hoje é sábudo? Banho nói já tomemo; num precisa mais trocá de ropa... Arre! Num quero ninguém cum chero di bacaiau do meu lado. Depois di mim ocê vem se

lavá di intero que eu num guento home só cum banho di gato; cunói tem que sê ansim, tudo limpo e cheroso.

Eta muié braba. Tá bão. Já que num tem ropa di durmi intãoce bamo durmi pelado!

Óia aqui, seu cuzarúim. Em veiz de ficá enchendo os picuá, pur que ocê num vai chupá prego pra vê se desenferruja? Pare de buli cumigo. Já falei que tô cansada e cum sono.

Por alguma razão o banho dela foi demorado; parecia não acabar nunca, para o desespero dele. Impaciente, ele reclama:

O diacho, muié! Até que hora vai essa ensebação? Ocê vai o num vai saí desse banho? Num tô guentando mais isperá...Já tá dano nos picuá.

Carma, home! Pare cum essa chiadera! Já tô saino! ... Pur que ocê num vai caçá sapo inveis de ficá torrando a minha paciência? ... Vai penteá macaco, vai!

Finalmente ela sai. Enrolada em toalha de banho felpuda, silenciosamente e “com cara amarrada, de quem comeu e não gostou”, ela rapidamente se aninha na cama, cobrindo-se com a colcha até a cabeça. Sem entender bem o que se passava, carinhosamente ele assenta-se ao lado dela e pergunta:

Amormeu. Ocê tá amuada ansim pur causo da lora da Brasserie? Puis fique...

Nem pode terminar a frase. Descobrindo a cabeça, num lance rápido, esbraveja ela:

Chispa daqui. Num tá veno que eu tô incomodada não, é? Vai catá coquinho na descida. Si tá cum precisão vai se arresorvê ocê memo sozinho; óia o banhero aí, óia.

A resposta a tal descompostura veio sob o chuveiro, quando ele “garro a matutá”, para não acordar a sua bela, que já devia estar dormindo:

Bem que eu tava disconfiado que a mardiçoenta tava de paquete. Tratô eu que nem cachorro; e pra compretá mandou eu se arresorvê sozinho. Morfética. Lazarenta. Tá pensando que eu sô sortero, é. Feiz eu gastá os zóio da cara quesse hoter. Divia ter posado era num muquifo, lá no escafundó do Judas.

Assim como a água não parava de cair, pois “o banho tinha de ser de intero”, por exigência dela, os pensamentos iam e vinham na cabeça dele: “Onde foi que eu amarrei a minha égua? Que puta bestera que eu fiz em casá quessa bisca rúim. Eta vida mardiçoenta que nói tamo levano; tamém, cumo pudia sê diferente: cuma lazarenta iguar se ferrei de verde e amarelo. A disgranhenta disgraçô cumigo; tá sempre de rabo virado. ... Quarqué dia eu pico a mula e num vorto mais.

Depois que se acalmou, voltou para o quarto, chutando o que achava ao alcance. Sem reação dela, resolveu dormir. E assim, cadum pro seu lado, na requintada cama de casal, ele e ela dormem um sono quase tranquilo, que só não foi pleno de tranquilidade pelas sonoras badaladas do relógio da Matriz.

Assim que raiou o dia, nublado e quente, o moço levantou-se, pôs a roupa, “lavô a cara na pia, “bascuiô os dente”, “barriô” e, vendo que a esposa ainda dormia, resolveu acordá-la.

Mor? Já crariô o dia! É sete hora. Ocê num vai acordá? Temo que ir simbora.

Virando para o outro lado da cama, sem abrir os olhos, pois ainda parecia não refeita da noite, dos desacertos do marido, dos comentários enervantes dele, de seu estado emotivo de moça “incomodada”, e das repetidas badaladas do relógio da Matriz, diz ela:

Vai assombrá porco, nhonhaco! Agor é hor de acordá eu? Ocê é um chato de marca maior. Num tem jeito memo!

Ofendido, pois imaginava que ela já o havia perdoado, que tudo voltara ao normal, explode ele em raiva mais uma vez:

Num dianta sê dilicado cum ocê. É chovê no moiado. Ocê é uma bruaca memo... Óia qui eu vô acabá largano docê. Dispois num vem chorá as pitanga, falô?... E qué sabê diuma coisa: Vái tomá na tarraqueta!

Depois de um silêncio de cemitério, refletindo no que responder para não desagradar ainda mais o marido, que, afinal, podia estar falando a verdade sobre a separação, diz ela:

Descurpe, mor. E prosseguindo: É pur causo que eu durmi um sono picado que só veno. E lamentando-se: Só deu crepe pra nói hoje! Inté parece praga de corvo! ... Ai, que puxa cansera. Tô esbagaçada, pareceno que levei um croque. ... Vô tomá um Melhorar pra vê si saro.

E eu vô tomá um Arcasersa pra arribá; num tô bão do estômbago; tô de bucho virado.
Quem mando enchê a cara; qué bebê que nem cavalo...
Como ele já estava pronto, e ela “pudia lerdiá” com os preparativos matinais, resolveu sair

um pouco do quarto, sem deixar de avisar a esposa da sua intenção.
Vô saí um poco, viu benhê!
Adonde ocê vai?...Vai dexá eu aqui sozinha?... Num faiz mar; já acustumemo cuisso!

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Vô fuçá pur aí. Dispois eu vorto pra nói decê pro restorante. Vô vim já já. ... Ocê vai decê pro café, num vai, mor?

Nem nu vô!

Às oito horas e quinze minutos o casal já estava na sala do café. Os ânimos pareciam ter se amainado, pois estavam num hotel de luxo; precisavam mostrar boas maneiras.

Trajado a rigor, com calça de brim azul marinho, camisa branca de manga longa, engomada, e gravata borboleta, o garçom servia o desjejum. Ao vê-lo, o rapaz, buscando uma analogia para se mostrar descontraído e irônico, comenta, “à boca pequena”, com a esposa:

Óia só aquele lá. Inté parece um pinguim; só farta a casaca...
Dexa di sê ridico. Dá zica troçá dos outro ansim adverte ela.
Equilibrando artisticamente em uma das mãos uma baixela de prata, com o desjejum para

dois, o garçom deixa na mesa do casal uma leiteira, com coador para separar a nata, uma chaleira, com coador para coar o chá, uma cafeteira, com o café já coado, e um açucareiro, todos de prata de lei e com o emblema do hotel. Simultaneamente, e com a mesma habilidade de manuseio, outro garçom se aproxima e coloca na mesa uma cesta de prata com bengala fatiada de pão francês, dois recipientes de vidro circulares com manteiga e dois outros com marmelada.

Quando o relógio bateu dez horas, o casal já havia deixado o hotel. O seguinte diálogo foi então ouvido:

Já que hoje é dumingo, e nói temo memo aqui na cidade, qui tar a gente dá um pulo lá no mercadão? diz a moça.

Fazê compra? Mai nói num troxe cesta nem sacola! Cumo que nói vai bardeá as mercadoria? Só se for pra fazê hora.

Tô memo é cum vontade de comê paster... Fruita e verdura nói compra do verdurero, na terça; pexe nói compra do sardinhero, na quarta; arroiz e fejão e otros mantimento nói pede pro Munhoiz (Casa Munhoz) entregá em casa.

Convencido de que a compra seria mesmo só de pastéis, ele acabou concordando. Assim, os dois rumam para o mercado municipal.

Continua.

Hotel Central PIra.jpg

Nota. Não conheci o Hotel Central por dentro. Imaginei-o assim após estudar algumas fotos antigas do prédio e porque, em minha casa, tenho instaladas, adquiridas da demolidora Catalini, algumas peças que fizeram parte dele: placas de mármore de Carrara, das antigas escadarias, uma grande porta de vidros, uma janela igualmente de vidros, incolores e coloridos, e quatro gradis de ferro. Isso facilitou a descrição. Por ocasião em que o prédio foi demolido, nos anos 80, eu fazia parte do Condepac (Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural) e não conseguimos impedir sua demolição, pois ao saber que o prédio seria tombado, o proprietário, interpretando ao pé da letra o que se pretendia, resolveu ele mesmo tombar o prédio, pondo-o abaixo.

O magnífico prédio do hotel era o mais luxuoso da cidade. Outros havia nas proximidades do centro: Hotel Brasil, Hotel Regina, Hotel Jardineira, Esplanada Hotel, Hotel Alvorada e outros mais. Minha opção pelo Hotel Central deveu-se ao valor histórico que ele representava para Piracicaba. 

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