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André (Pinduca F68)

01/01/2016 - Por marcio joão scaléa
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O Agrônomo convalescia de uma hepatite contraída em Santa Helena de Goiás na safra 70/71. Foram sessenta dias de cama, severa dieta e banhos de picão preto. Doces à vontade, fartamente providenciados por suas irmãs Carmen e Rosa, principalmente os "strudel" e o sagu com suco de uva, inesquecíveis. O curioso é que outra vítima dessa mesma epidemia, curou sua hepatite sem repouso, pois não podia parar de trabalhar : lavadeira, viúva, cinco filhos, D.Maria Lavadeira, em Santa Helena,  tratou de sua doença com os mesmos chá e banho de picão preto, acrescidos de rapadura de jurubeba, que ela passou constantemente a mascar. Mas isso é outra história.

 

Os sessenta dias de "resguardo" foram interessantes por darem ao Agrônomo a noção da sensação de abandono que se abate sobre um doente quando começam a escassear as visitas. Nas duas primeiras semanas, ao correr a notícia de que ele caíra doente, houve uma chuva de visitas, que foram rareando e praticamente desapareceram nas duas últimas semanas. Nestes últimos quinze dias, pelo meio da tarde a agitação começava, com a forte expectativa de quem o estaria visitando naquela noite; lá pelas oito horas da noite a expectativa era pelo atraso das visitas, que já não iriam poder permanecer por muito tempo; às nove, nove e meia, a expectativa era se ainda viria alguém; e às dez começava a tortura : a decepção de mais um dia sem visitas misturando-se com a insônia, com a expectativa de um dia seguinte igual e com a perspectiva de muitos dias mais ali naquele cativeiro. Vinham as tentativas de leitura, mas com baixa concentração, até que pelas seis e meia da manhã, após a decolagem de um avião de Congonhas que insistia em passar sobre sua casa, o Agrônomo tinha um sono até o meio dia, quando tudo recomeçava : banho, café/almoço, novas expectativas. Mercedes Sosa, Milton Nascimento, The Who, Nina Simone e o Catarina (apelido do Moacir Pereira Oliveira, catarinense, esalqueano, precocemente falecido em acidente de moto) foram seus companheiros mais freqüentes nesse período.  Mas tudo isso também não vem ao caso, pois esta história era para contar como o Agrônomo comprou seu primeiro carro.

 

Tudo começou bem lá atrás, ainda no último ano do curso de agronomia, quando o então Universitário estreitou sua amizade com um colega, o Amigo 6 e sua companheira, a Amiga1. Época do "Paz e Amor", o casal morava em uma casinha bem na saída de Piracicaba para São Paulo, que passou a ser o ponto de encontro de muitos amigos, graças ao ambiente fraterno que ali se encontrava e aos longos papos, uma pausa na tensão diária de estudo e preocupações com o futuro : depois da Escola tinha o Mundo! Caído no Mundo, começo de carreira, o Agrônomo tinha períodos de inatividade, entre as campanhas de pulverização aérea que coordenava pelo país, períodos em que se revisavam os aviões, sempre com base em São Paulo, onde o contacto com a dupla de Amigos se intensificou, ao ponto de virem todos morar juntos numa "comunidade" na Rua da Consolação. Durante a semana fazia-se artesanato que era vendido na Praça da República aos domingos. A condução neste período era um jipe, por nome Francisco, que o Amigo 6 havia comprado : barato, manutenção simples, cabia em qualquer canto, valente, e muito importante, ladrão nenhum iria se dar ao trabalho de roubar um jipe, não valia a pena. Possuir um jipe passou a ser o sonho de consumo do Agrônomo.

 

Tudo continuou no último dia de repouso por causa da hepatite, quando Claiton, o irmão do Agrônomo o convidou para ir a um leilão da SUCAM (antigo serviço de erradicação da malaria do ministério da saúde) no bairro da Liberdade. Seriam cento e tantos lotes, jipes, caminhonetes e caminhões. Dos oito jipes a leiloar, a maior parte estava ruim, uns dois eram regulares e tinha um excepcional : motor novo (conforme confidenciou seu motorista, que não queria vê-lo nas mãos dos donos de desmanche da Rua Piratininga), pintura razoável, capota feinha, mas parachoques primorosos : o dianteiro com suporte e roldanas para guincho e o traseiro de chapa, com uma plataforma larga. Seu numero de frota era 244.

 

Começado o leilão, pelos jipes, o Agrônomo desanimou, pois os primeiros (e piores) foram arrematados por muito dinheiro. Um dos bons, então, extrapolou. Até que chegou a hora do 244, anunciado como Jeep Willys 1954 em bom estado de conservação, lance inicial de Cr$2.000,00 (os primeiros tinham tido lance inicial de Cr$1.500!). Antes de qualquer lance, uma contestação por parte de um interessado : esse jipe não é 1954, é 1953, basta ver o formato do capô. Leilão suspenso, e até que se comprovasse o ano do lote via documento de trânsito, passaram a leiloar os demais veículos. Mais de uma hora depois, quando as atenções dos donos dos desmanches estavam concentradas lá na frente, nos caminhões, foi retomado o leilão do lote 244, confirmado como sendo 1954. Primeiro lance, Cr$2.500,00, entre o dou-lhe duas e o dou-lhe três, o Agrônomo ergueu o braço e balbuciou dois mil e seiscentos cruzeiros, sob o olhar incrédulo de seu irmão e acabou saindo do leilão montado em seu primeiro carro, um legítimo Jeep Willys Overland, ano 1954, cor laranja com capota preta rasgada, capô alto, biela longa, sem partida e sem freios, mas seu. Que foi batizado de André, em homenagem ao personagem do livro "Crônica da Casa Assassinada" de Lúcio Cardoso.

Marcio Joao Scaléa (Pinduca F68) é Engenheiro Agrônomo ex morador da Republica Mosteiro

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